domingo, 3 de maio de 2020

Nascer é um milagre. Viver é um milagre.



Quando nasci, estava sem ar, já morta. 

Na cama do hospital, minha mãe ali estava em posição de parto, a ver-me ali deitada, ainda encharcada com o sangue das dores do nascimento. 

Estava parada, silenciosa, não chorava, não me mexia…

Laura, minha mãe é que chorava, porque parecia ver a sua filha que mal tinha nascido, já estava morta. 

Tantas dores padeceu e a mãe vê que o ser que albergou em seu ventre, por nove meses, sair assim, sem vida…

Laura nunca gritou a ter os filhos. Eu já era o segundo ser que do seu ventre nascia, e portanto, ela já bem conhecia como era ter-se os filhos.

O seu primeiro filho foi dado à luz pelas mãos de uma parteira, em casa.

As suas vizinhas não se acreditavam que ela não iria gritar quando a sua hora chegasse. E acompanhada pela parteira, pouco a pouco, o meu irmão Carlos veio ao mundo. E as vizinhas, do lado de fora, que esperavam ouvir quaisquer gritos, apenas ouviram o choro do meu irmão que nascia.

- Ela bem disse que não chorava – ainda murmuraram as vizinhas, com os ouvidos encostados à parede do quarto que dava para o corredor do prédio onde elas se amontoavam à espera daqueles desesperos de grávida de primeira viagem.
Porém, passados  cerca de três anos, a minha mãe, agora ali estava no hospital, por recomendação médica, porque a minha gravidez era de risco. Estávamos numa casa de saúde particular, com todos os cuidados que de melhor haviam na época, em Angola.

Minha mãe bem disse às enfermeiras que a hora do meu nascimento já estava próxima… que ela não era de gritar a ter os filhos… que eu já me remexia dentro dela pois sentia-me sufocar por lá estar para além do necessário…

Chamou a enfermeira várias vezes, mas o olhar desta, mostrava incredulidade, pelo facto da minha mãe não estar ali a gritar, como habitualmente faziam as outras mulheres que lá iam ter os filhos.

Minha mãe sentia as dores das contrações, como todas as mulheres, e para aguenta-las, quando ainda estava em casa, dava umas tantas voltas à mesa da sala de jantar, enquanto aguardava o momento do nascimento.

Minha mãe Laura, mulher forte e corajosa, deixou os pais em Portugal com poucos meses de casada para ir ter com o marido que em Angola trabalhava, ainda em plena guerra colonial.

Esta mulher firme foi construída pela vida dura do seu tempo, que desde criança já tinha obrigações a fazer na casa dos pais, num tempo em que os filhos, desde pequenos, acostumavam-se a lidar com as responsabilidades e os contratempos da vida.

Na família aprendia-se que a vida é uma constante luta não apenas pela sobrevivência mas antes, e em primeiro lugar, era  ali na família que se sabia e se contava com a proteção de quem realmente nos ama e nos defende nas tempestades que um dia surgirão. 

Na família, os filhos são uma benção, uma nova vida que do corpo da mulher, fazem-se mãe e pai, para sempre.

As dores de um parto não eram, para a minha mãe, tão imensas que não conseguisse suportar. Talvez a sua constituição física também a ajudasse, pois nem todas as mulheres têm filhos sem complicações.

Minha mãe dizia que a cada novo filho, o seu corpo rejuvenescia em saúde e força.

Mas isso de uma mulher ter um filho e não gritar, as enfermeiras não se fiavam. Ainda não está na hora, diziam elas. E o tempo foi passando…

As dores das contrações não a afligiam, até que sentiu, sim, que eu já morria dentro do seu ventre.

E uma mãe atenta sente o que sente o seu filho, já desde o seu ventre. E já o mal-estar de morte envolvia a minha mãe, porque eu já morria em seu ventre.

Ah, a minha mãe havia de me colocar cá fora, nem que fosse sem a ajuda de ninguém. Ainda deu um grito a chamar alguém.

E lá veio a enfermeira, a rir-se e a abanar a cabeça, ainda a teimar que não era a hora do meu nascimento.

Enquanto isso, a minha mãe agarra-se às suas pernas, em posição de parto, e faz a força que já sabia que deveria fazer para me jogar para fora do seu corpo.

Ainda a enfermeira calçava as luvas para ver a dilatação, o que já tinha feito tantas vezes naquela noite, quando a minha mãe me empurrou, agarrada à cama, para que viesse cá para fora. 

Após alguns puxos, eis que eu saio e vou para fora. E assim fui empurrada à luz deste mundo terreno, já sem forças, roxa, imóvel.

Minha mãe ao ver-me como que já morta e toda ensanguentada, logo grita:
- Se a minha filha morrer, processo este hospital!

Mas dentro do seu coração materno, nenhum processo iria trazer a sua filha de volta. Enquanto a enfermeira me agarrava pelas pernas, ela faz uma promessa:

- Se minha filha sobreviver, Nossa Senhora de Fátima será a sua madrinha de batismo.

A enfermeira agarra-me pelos pés e dá-me umas palmadas… Meu corpo estremeceu, senti o ar voltar aos meus pulmões, chorei…

Choro ainda mais porque ali, por mãos estranhas, sou limpa do sangue… 

Aos poucos a cor da vida, rosada, lentamente invade todo o meu corpo. Estava viva!

Assim, nasci para este mundo, a partir da dor, por um caminho entre a morte e a vida, por um fio fraco de esperança. 

Abri os olhos numa madrugada de novembro, pelas três horas da manhã!

Neste primeiro dia, vivi o meu primeiro milagre da minha vida. Aliás, vivi dois milagres. O primeiro foi ter passado pelo milagre do nascimento. O outro foi por já ter morrido, e logo depois ter revivido.

Passados anos, a minha mãe irá me contar, vezes sem conta, o que na altura ocorreu.

De nada valia, se estava num dos melhores hospitais que na altura havia por ali, pois isso de amparo da ciência ou técnica humana é mais uma daquelas questões com que me iria debater durante toda a minha vida.

Nos braços da minha mãe, já mamava com todas as minhas forças. Parecia que os sustos já se haviam dissipado, mas não.
Passados alguns meses, já andava de médico em médico por causa de chorar muito. Chorava e chorava, tinha febre e algo se passava comigo. Eu agarrava as minhas orelhas de dor, mas não conseguia dizer onde a tal dor estava.

- Deve ser do leite, - disse um médico à minha mãe.  – É melhor dar-lhe outro leite pois o seu leite deve ser muito forte para ela.

Mas eu não gostava de outro leite que não fosse o leite da minha mãe. A natureza sempre foi sábia em sua simplicidade de dar o correto nas horas devidas. Nós, seres humanos temos, por vezes, esta vontade de inventar, desfazer e refazer uma nova natureza sobre a que já existe.

Por vários dias chorei, com febre e ainda mais com fome, porque não gostava de outro leite que não fosse o da minha mãe.

Parecia que piorava de dia para dia. Eu gritava e assim dizia na minha linguagem de bebé onde me doía, mas ninguém me percebia.

Sempre há quem indique um especialista. Mais um médico que talvez desse uma melhor opinião.
Meus pais nunca foram de baixar os braços, e por isso, lá foram a uma tal clínica privada que uns amigos indicaram, para ver se descobriam o que eu tinha.

Porém, chorava sem parar. 

Para não importunar as outras mães e crianças que lá estavam, a aguardar a consulta, a minha mãe para me calar, deu-me o peito para mamar. Se tivesse que morrer, pelo menos morria satisfeita!

E eu, esfomeada como estava, começo a beber aquele leite materno que me sabia tão bem.

Mamei, mamei, até me fartar. 

Estava esfomeada, e assim mamei até me cansar! Exausta, por fim, enfartada, deixei-me cair num sono profundo nos braços da minha mãe, quase morta…

Já no consultório do médico, este mais sábio, indignou-se por terem dito à minha mãe que o leite materno me faria mal.

O leite materno é um dos melhores antibióticos naturais que um bebé poderá tomar nos seus primeiros anos de vida. E isto de leite de vaca ser melhor que o leite materno, de onde tiraram tal parvoíce?

Feitos alguns exames como deve ser, lá se foi diagnosticado o que tinha. Uma otite já em estado tão avançado que o médico disse logo à minha mãe:

- Se a febre não parar em 48 horas, com os remédios que lhe vou receitar, o caso da sua filha está perdido.

Sim, mais uma vez, uma sentença de morte estava destinada para mim.

Já no colo da minha mãe, satisfeita por ter finalmente sido alimentada, como deve ser uma bebê, ali estava com uma febre proveniente de uma inflamação grave nos ouvidos.

Porém, venci, mais uma vez, as previsões médicas e científicas. Sobrevivi.

A vida vem de Deus e a ciência humana é um dom de Deus. Há que persistir e nunca desistir! Quando se ama, a vida de quem amamos está em primeiro lugar! 

De resto, que nos deiam sentenças de morte e previsões científicas bem fundamentadas. O ser humano não é Deus, e quando se acha melhor que Deus, infelizmente bate com a cabeça num grande muro: a sua incapacidade para explicar os milagres que Deus nos concede todos os dias, uns grandes, outros quase imperceptíveis. 

O passar do tempo nos faz reconhecer estes milagres se estivermos atentos ao que nos acontece ao longo dos anos. Um desses milagres, eu diria, graça especial, é ter uma mãe que nos ama incondicionalmente. 

E eu fui duplamente privilegiada no meu nascimento. Para além da minha mãe da terra, fui também dada em adoção à Mãe de Deus e a partir daquele mês de novembro de 1965, nasci, tendo uma mãe na terra e outra no céu…

Obrigada minha mãe Laura, e meu pai Antonio, sempre presentes, ensinando-nos que não há que ter medo da vida, mesmo que a morte pareça bater a porta ... As sentenças médicas não devem minar a nossa vontade de sobreviver e defender quem mais amamos.
Obrigada, minha Mãe Santíssima por me levar pela sua mão desde a promessa da minha mãe, tendo-Te como madrinha para toda a minha vida, material e espiritual.

Salve Maria!




sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O chip com prazo de validade e o pacote de amendoins



Nesta semana, ao validar um título de transporte público, deparei-me com a seguinte mensagem: “Título inválido”.

Infelizmente os títulos de transporte de Metro aqui no Porto tem um prazo de validade: 1 ano. Mesmo que os títulos estejam em perfeitas condições, não adianta nada cuidar deles pois ao fim de um ano, eles “morrem”, restando-lhes apenas um destino: a lixeira.

Nunca percebi bem porque um título recarregável em perfeitas condições tem de ser jogado no lixo simplesmente porque o chip está programado para findar ao fim de um ano.

Há cerca de uns anos atrás estes mesmo títulos de transportes duravam por anos, sempre prontos a carregar, quando fossem necessários para serem utilizados. Eu tinha vários deles em minha casa, e quando algum familiar precisava utilizar os transportes públicos, cedia o tal “título de transporte” para que fosse reutilizado conforme as necessidades.

Porém, há cerca de uns anos atrás, a empresa de transportes mudou a sua política e resolveu dar aos títulos de transporte um prazo de validade e o chip neles contido é fiel aos prazos e ao cabo de um ano, “morre”. Assim, ao fim de um ano, sendo pouco ou muito utilizado, só resta uma coisa a fazer:  rasgar o título de transporte mesmo que visivelmente em bom estado e comprar outro por 60 cêntimos a cada ano.

Quando coloquei esta situação diante do balcão de atendimento da empresa, foi-me colocada a teoria da reciclagem, que assim se gastava menos e o material era reciclado. Antigamente, emitia-se bilhetes a cada viagem e jogavam-se fora, mas agora pode-se, durante um ano usar o mesmo título e usa-lo. 

Mas a minha questão é porque ele tem de ser mudado a cada ano se está em perfeita condições? 

Eu até poderia compreender se o título estivesse degradado pelo uso e ser realmente necessário substituí-lo. Mas se o título de transporte está visivelmente em bom estado porque tenho de o rasgar e coloca-lo no lixo só porque o chip tem a validade de um ano? 

Desculpem-me, mas Isso nada tem a haver com reciclagem ou com amor ao meio ambiente, mas finjo que acredito.

Reciclagem e amor ao ambiente a sério, é o pacote de amendoins de antigamente.

Sim, há cerca de uns trinta anos atrás, não havia quem falasse em reciclagem e em defesa do meio ambiente, mas penso que nessa altura é que sabia o peso destas palavras.
E isso apenas usando um simples caso: o pacote de amendoins.

Nesse tempo, havia quem vendesse amendoim torrado pelas ruas e isso era realmente um assunto bem ecológico e ai de quem não fosse amigo do ambiente.

Quem comprasse um pacote de amendoins torrados, primeiro tinha de decidir uma coisa: se queria um pacote pequeno, médio ou grande e o preço dependia dessa opção. Naquela altura, comer o necessário era imperativo pois o desperdício não cabia nos bolsos onde havia tostões. O que se comprava tinha de ser comido e nada de andar-se aí a espalhar pelo chão ou jogar no lixo o que já não nos apetece. Antes de escolher, tinha de se ver o que se queria comer e quanto se ia comer, pois a comida não caía do céu.

A quantidade dos amendoins selecionada era colocada num cartucho de papel mata-borrão. Este papel resistente e absorvente, albergava os amendoins torrados e ainda quentinhos.

Mas o cuidado do meio ambiente era algo que se fazia naturalmente pois se há amendoins, há cascas e o chão da rua não é lixeira. Por isso, o vendedor de amendoins dava também um outro cartucho de papel, e este estava vazio para ser aí colocadas as cascas dos amendoins que iam sendo comidos.

Ai de quem deixasse cair cascas pelo chão, não fosse um familiar ou vizinho dizer que tinhas deixado cair alguma casca de amendoim, pois todas tinham de ser colocadas no cartucho de papel vazio que tinhas recebido do vendedor ambulante.

E depois de comidos os amendoins, os pacotes de papel eram colocados no lixo? Há que reciclar a sério pois amor ao ambiente é reutilizar e não desperdiçar. Por isso, jogava-se na lixeira as cascas de amendoim e trazia-se para casa os dois pacotes de papel já vazios.

Em casa, estes dois pacotes eram desfeitos e meticulosamente guardados pois nessa altura, a reciclagem e o amor ao ambiente era um imperativo.

Cada uma dessas folhas de papel borrão que antes albergara os amendoins agora estavam disponíveis para servir de papel absorvente na cozinha.

E como o papel era grosso e resistente, poderia ser utilizado de um lado e depois do outro e nem se compara com os papeis absorventes dos rolos de cozinha de agora que usa-se uma vez e joga-se fora. 

O papel ficava ao sol depois de usado uma vez, para dar mais que uma utilização, até finalmente ser jogado fora após estar realmente cheio do óleo ou azeite da fritura dos carapaus fritos, iscas ou pasteis de bacalhau caseiros que em casa se faziam.

E assim, um simples pacote de amendoim, numa altura em que pouco se falava de reciclagem ou meio ambiente ensina-me que isto de “chips” determinarem a validade é realmente questionável, e finjo que acredito nestes argumentos da “reciclagem” e do cuidado do ambiente que hoje geram tantas desculpas como esta de se pagar mais 60 cêntimos a cada ano por um pedaço de cartolina modernizado com chip.





quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Quando se é hora de deixar nascer!


Há cerca de cinquenta e quatro anos, num hospital, uma mulher de nome Laura perguntava a uma enfermeira se já era a hora de dar a luz o filho que trazia no seu ventre. Esta mulher, apesar dos comuns sintomas que toda a mulher tinha e tem no parto, não era de gritar e nem de se queixar, apesar das suas dores.

Foi assim, sem gritos ou berros que deu a luz ao seu primeiro filho, o Carlos, em casa, sem quaisquer complicações, apenas com a ajuda de uma parteira, se é que se pode chamar assim, quando naquele tempo, as gentes assumiam uma habilidade natural para fazer isso ou aquilo, cuja sabedoria não provinha de uma faculdade e nem de um curso técnico.

Mas esta segunda gravidez era um pouco diferente, era de risco, disseram os médicos, e por isso, num hospital particular e com todos os especialistas técnicos era mais seguro à Laura ter o seu segundo filho.

Na altura não se sabia ainda se era menino ou menina porque isto de ecografias para se ver o sexo biológico, como agora se diz, não existia.  Crendices à parte,  na altura, as mulheres tinham sempre forma de saber se era menino ou menino, e a Laura, já tinha um palpite: desta vez era menina. Já tinha feito as roupinhas, e pelo sim ou pelo não, roupinhas de cor verde ou branquinha, não fosse vir um menino e julgar-se ser uma menina. As cores traduziam assim esta perspetiva materna de desejar o que no seu ventre era tecido lentamente…
Isto de aguardar nove meses por uma criança que estava no seu ventre era um processo de espera, preparado ao pormenor, pois vinha um novo ser à vida, uma criança, meu filho ou minha filha, sempre queridos e desejados.

Laura, enquanto gestava dentro de si uma vida, preparava ternamente durante aquela espera, as roupinhas dos seus bebés. Isso de comprar tudo feito nos shoppings nem se podia e nem havia. Até mesmo as fraldas eram compradas ao metro e cortadas à medida. Eram nove meses de muita preparação, e aproximando-se os dias, preparava-se uma malinha com as primeiras roupinhas e fraldas do bebé, para que tudo estivesse pronto no dia do nascimento ou se fosse necessário, levar-se ao hospital.

E no hospital, a Laura já pressentia que era hora de dar à luz. Dentro de si, sentia que a vida se remexia para sair de dentro dela, e que não importava os pareceres técnicos, se dentro dela, a cisma de mãe tinha a força da natureza a dizer-lhe: -é agora!

A enfermeira dizia que ainda não era hora, afinal se ainda não grita de dores, há de ser a hora, porquê? Nos livros técnicos, deseja-se a uniformidade, pois a complexidade do ser humano é muita bagagem que só o tempo e a experiência são capazes de ensinar os senhores doutores.

Entretanto, o tempo passava e  Laura  sabia que já era hora. A natureza das coisas vivas tem o seu momento para nascer e morrer. O relógio biológico dita o tempo, e não há dinheiro que pague para o atrasar ou adiantar. Podemos amenizar a dor, salvaguardar isto ou aquilo, mas esta hora de nascer e de morrer, quer queiramos ou não, não está ainda disponível como um botão que liga e desliga, e já está.

Por isso, a perspicaz Laura não se preocupou com a sabedoria humana e virou-se para a sabedoria de Deus. Colocou-se em posição de parto e após alguns puxos deu-me a luz, ali mesmo, onde estava, sem esperar que a enfermeira viesse com as luvas ver se já era a hora de nascer ou não.

E assim saí de dentro de minha mãe… não chorei, não gritei, estava ali, roxa e estendida… 

Ao ver-me assim como morta, minha mãe faz esta oração:
- "Meu Deus, se minha filha sobreviver, a madrinha de batismo será tua Mãe, Nossa Senhora de Fátima."

E então há um rebuliço no hospital. A enfermeira agarra em mim pelos pés e dá-me umas palmadas… e só assim, finalmente chorei…

Quem nasce e não chora, não sobrevive… pois este chorar ao nascer é um abrir da vida para um mundo novo fora do conforto líquido no ventre da mãe.

Foi assim que a minha mãe me deu o nome de Rosária de Fátima em ação de graças a Nossa Senhora de Fátima.

Desde o dia do meu nascimento, e tenho certeza que mesmo desde o meu primeiro segundo no ventre da minha mãe, Deus já me tecia como ser humano único e imprescindível para Ele e sua Mãe Maria Santíssima.

Não importa a sabedoria humana, se a sabedoria de Deus vê muito mais longe que números de identidade. 

Deus vê seres humanos, cada qual com seus dons e missão. Cada um deles não é descartável, nem dependente para nascer, das condições mínimas necessárias de sobrevivência como agora se diz.

Quando eu fui gerada, minha mãe disse que não fui planeada. Um casal jovem, em terras estrangeiras e longe da família só podia contar com o seu amor mútuo e a providência de Deus. Se calhar, para além disso, será que mais importa?

E assim, com toda a alegria e com um vestido lindo que na altura se usava nas crianças quando se batizavam, fui acolhida na Igreja católica. 

E a foto com os meus padrinhos da terra, junto aos meus pais e irmão mais novo foi tirada  na igreja onde me batizei, junto ao altar de Nossa Senhora de Fátima, a minha madrinha do céu, em memória de um milagre, o grande milagre da vida, esta vida que nunca vem por acaso, mesmo que pensemos ser mais uma criança que vem ao mundo…

Há cinquenta e quatro anos, esta criança, um dia fui eu, noutro dia foste tu, e quem aqui nesta vida, veio, nem que seja por um instante, já contou e fez história. 

A cada um de nós, Deus nos faz únicos em personalidade e dons recebidos, e nestes tempos de tantos medos da vida e do futuro, se calhar é preciso que haja quem como minha mãe, não se fie em vontades humanas, mas na vontade de Deus.
 (Texto de autoria de Rosária Grácio)

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O segredo da Belladonna





O segredo da Belladonna

Escondi-me neste sepulcro de terra, à espera das primeiras chuvas, do sol que o verão traz quente e menos húmido. Não posso subir esta terra sem que me mostre pronta para florir e dar a vida na terra dos viventes, dizer que estou aqui apesar de parecer morta durante todo o ano.

Quando Deus me fez assim silenciosa e obscura, queria ensinar em sua sabedoria que nem tudo que é bom e belo consegue-se perceber. Há coisas que só o tempo é capaz de dizer do seu valor, da sua importância e antes de tudo, da imensa generosidade
de Deus.

Deus dá a seu tempo o que precisamos porque sabe o que realmente necessitamos a cada etapa da nossa vida. Os humanos pensam ser como deuses, sabedores do que é certo e do que é errado, ousando redizer a história e fingindo ser mais sábios que a perfeita sabedoria de Deus.

Por mais racionais que sejam, os humanos veem apenas o presente, e por vezes ainda calculam tendo em conta o passado. Porém, Deus vê muito além do que se vislumbra na realidade vista e sentida.

Deus vê além das aparências humanas, e rasga o tempo como se fosse um só. E como Pai Justo e  amável, vê cada uma das suas criaturas com as suas reais necessidades, provendo conforme o que for realmente bom a cada um.

E então eis que no tempo certo, eu rasgo a terra e cresço, florindo em meio ao que ali existia, como se sempre estivesse ali, ocupando o meu lugar, em direção à luz, admirando quem me vê.

A surpresa que dou a mostrar-me, quando menos se esperava, no tempo certo e oportuno segundo a Vontade do meu Criador. Sou feliz e deixo que a minha beleza se expanda gratuitamente, em Ação de graças.

Sei que depois de florir e de completar o meu tempo voltarei a esconder-me na terra, resignando-me novamente à clausura onde aguardarei até o ano seguinte.

A vida está para além do visível. A paciência é o tempo de espera necessário para que possamos florir com todas as nossas forças, em plenitude pois tudo tem o seu tempo e momento.



“Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu” (Eclesiastes 3,1)

A Belladonna permanece dormente, escondida debaixo do solo durante o ano inteiro esperando o momento oportuno para dar a sua flor, aparecendo entre as outras plantas com toda a sua beleza. Depois de dar a flor, volta a esconder-se na terra até o ano seguinte.

Tem como nome científico “Amaryllis belladonna”, uma planta perene, bolbosa, da família das amarilidáceas cujas flores atrombetadas aparecem sazonalmente, logo após as primeiras chuvas depois da estiagem e antes das folhas. O bolbo permanece em dormente até a humidade no solo permitir o seu desenvolvimento.

A etimologia do nome genérico Amaryllis radica-se numa frase das Éclogas de Virgílio onde é usada a palavra grega αμαρυσσω (latinizada como amarysso), significando “para acender”, referindo-se a uma pastora.

“O segredo da Belladonna”
Texto de autoria de Rosária Grácio
Os pormenores sobre a Belladonna foram consultados em

Vídeo, fotos e Narração: Rosária Grácio

Música do vídeo: The Rising
YouTube Audio Library

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Ser pai



Ser pai!

Ser pai não é ser apenas o pai
de alguém.
Ser pai é ir mais além de uma
simples fecundação
pois quem é pai, dá de si por
inteiro, sem exceção
por quem é filho, mesmo que
não o seja por definição.
Quem é pai, tem braços fortes
no furor da tempestade
Tem as palavras certas nos
momentos da tristeza e dor
O amor de pai escreve-se com
coragem e tenacidade
Ser pai é não se deixar vencer
pela idade ou falta de vigor.
Os anos passam, mas um pai
nunca esquece os seus filhos
E ao ver os netos, ser ainda
mais pai e tornar-se avô.
Pois sua missão de pai não
acaba com os seus filhos crescidos.
Quem lê estas linhas poderá
pensar que já não há pais assim
E que nestes tempos, o amor de
pai já não se vê como antes
Mas se conhecesses o meu pai,
ah, … verias que há sim
Homens que são pais e mais
pais, nestes tempos que antigamente.
Ah, se conhecesses o meu pai,
o que dele aprendi para o hoje que sou
Compreenderias que dele não me
ficou só o seu sangue nas veias
Nestes parcos versos, seria
impossível falar de ti, meu pai amado
de quando os seus olhos
fecharam, e nos meus, quantas lágrimas verteram…
Perder um pai como fostes dá
uma saudade com tanta dor sem palavras
Sem ti fisicamente, resta-me
lembrar do quanto me ensinastes…
As ondas do mar da vida são,
por vezes cruéis e prontas a te afogarem
Porém, não tenhas medo, vê o
horizonte do possível e segue em frente
A vida se faz a andar,
deixando para trás toda a areia do receio …
(Poema de autoria de Rosária Grácio)

“Ser Pai”

Poema de homenagem póstuma ao meu pai, falecido a 09/07/2019

Este poema foi um dos poemas seleccionados para fazer parte do Volume XI da Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea, Entre o Sono e o Sonho!